"Bem vindo à Escola dos Líderes"
Por Manuel Loff, Pelo contrário
Público, 02/02/2012
Há dias participei no Porto num debate sobre o documentário Praxis que o realizador Bruno Cabral dedicou à observação da chamada "praxe académica", e que foi projetado por proposta da Associação Milímetro. O filme ganhou o prémio do DocLisboa para a melhor curta-metragem nacional, não está em circuito comercial, e foi apresentado apenas em debates, em universidades ou fora delas, e na própria Assembleia da República.
Aquilo a que se tem chamado "praxe" é essa série de práticas mais ou menos ritualizadas de que são alvo (para não dizer diretamente "vítima") os estudantes recém-entrados nas escolas de ensino superior, antes mais ou menos restritas a Coimbra, mas que hoje, 30-40 anos passados sobre o seu desaparecimento, em plena contestação da ditadura e durante o processo revolucionário, se generalizaram a um conjunto de escolas e de cidades incomparavelmente mais diverso do que no passado.
A filosofia do documentário (de que Carlos Isaac é diretor de fotografia) é mesmo a de mostrar, cruamente, com o cuidado de não recorrer a qualquer discurso interpretativo. O que nos permite, aliás, obriga, a tomar partido. A câmara mostra-nos práticas de gosto completamente duvidoso (obrigar estudantes a comer alho até ao vómito, para conseguir, na linguagem dos "veteranos" que organizam e supervisionam a cena, a sua "desparasitação"; despejar garrafões de vinho sobre estudantes seminus; enfarinhá-los; vendá-los; obrigá-los a demonstrar a sua maturidade através da ingestão de álcool; ...) que estão muito longe de nos surpreenderem. O mais revoltante, contudo, é toda a representação de um ambiente de caserna que transforma uma experiência tão entusiasmante quanto deveria ser a dos primeiros meses de entrada na universidade numa simulação reles de uma recruta de tropa especial, integrando o pior, o mais violento, o mais indignante, da cultura militar. Grita-se permanentemente ao "caloiro" que ele não pode "olhar nos olhos dos veteranos"; reúnem-se centenas de estudantes num "juramento de praxe" no qual se exige aos "caloiros" declarações solenes de obediência a outros estudantes que, um/dois anos mais velhos, se tanto, por terem passado pelas mesmas experiências humilhantes, pensam ter ganho o direito de as infligir a outros recém-chegados. Entoam-se refrões com que se pretende sublinhar a "superioridade" de uma determinada escola/curso, que podem chegar a impronunciáveis grosserias que, permitam-me, fazem rimar a sigla ISCTE com órgãos sexuais masculinos sempre em pé...
Sucedem-se exercícios a que se obriga os recém-entrados, repetidos até à náusea, numa auto-humilhação que os torna terrivelmente constrangedores, quase todos centrados numa paródia psicótica da sexualidade: forçam-se estudantes a repetir, um a um, perante os seus colegas, em cima de uma mesa, quadras grosseiras sobre o seu pretenso gosto em práticas homossexuais; simulam-se em público, perante centenas de colegas, atos sexuais, enquanto os "caloiros" verbalizam expressões de prazer que lhes são impostas; num caso, um "caloiro" deve esfregar terra e bosta húmidas no cabelo de uma colega sua e simular que a penetra analmente...
O filme deixa-nos incrédulos. Como é possível que milhares de jovens que entram anualmente no ensino superior, se sujeitem a semelhante humilhação psicológica, afetiva, física?! E como é possível que banais estudantes universitários (que não são propriamente membros de seitas neonazis ou de claques de futebol) a pratiquem, em Portugal, no séc. XXI? É um jogo, dizem-me, uma "brincadeira". Na qual, para espanto meu (ou talvez não...), não há um sorriso, uma gargalhada da parte das vítimas/protagonistas deste disparate todo, o que é parte intrínseca do ritual! Grita-se, insulta-se, suja-se, magoa-se... Um teatro da provação, da submissão do dominado a quem se exige que a aceite, e da tortura sádica da parte do que representa o papel do dominador. Digam-nos o que disserem, é inaceitável não se perceber as consequências psicológicas e morais de semelhantes rituais.
A grande maioria destes rituais foram filmados (e são realizados) dentro das faculdades, ou no perímetro imediatamente exterior, o que incumpre abertamente a lei. Não há como evitar perceber que eles se fazem. Desolador é ver, por exemplo, um padre que fala a "caloiros", sentados no chão, vestidos de forma absurda e vigiados pelos "veteranos", de pé. O sacerdote repete-lhes que "praxe tem uma dimensão de integração" (tese atrás da qual se protege quem a organiza) e perora sobre a distinção entre a "verdadeira" e a "falsa alegria" naquela que se designa a "bênção ao caloiro"...
Rituais de iniciação a que se submeteram, e submetem, aprendizes e todo o tipo de recém-chegados a profissões, ciclos de estudo e de formação militar ou outra, existiram ao longo dos tempos e dispersos por modelos de sociedade muito diversos. Tal não as faz mais aceitáveis. Sempre produziram violência, física e psicológica, ferimentos, mortes. Nas universidades, são erroneamente descritas como produto de uma pretensa "tradição académica" que não passa de uma adaptação a cada momento histórico da aplicação prática de valores e princípios mais ou menos dominantes em determinada comunidade. É arrepiante perceber que aqui esses valores são os da legitimidade e bondade de uma humilhação que permite à vítima poder sentir-se parte do grupo, da confusão entre "integração" e "submissão" a uma autoridade absurda. De uma "praxe incutidora de valores", que "nos ajuda nesta grande escola de vida que é a Universidade", fala uma caloira, que agradece, de joelhos e autodescrevendo-se como "reles bicho", aquilo por que a tinham feito passar.
Num átrio em que se realizam algumas destas práticas, em letras garrafais, alguém escreveu: "Bem vindo à Escola dos Líderes". É o ISCTE. Por acaso. Podia ser qualquer outra... Historiador (a pedido do autor, este artigo respeita as normas do acordo ortográfico)»
(reprodução de texto que encontrei, por mero acaso, ao percorrer o Facebook, na página de Artur Cristóvão)
Sem comentários:
Enviar um comentário